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sábado, 6 de julho de 2013

AQUELA JANELA

Por Jaciene Andrade*


Primeiro, foi a desculpa clássica: “ela já está muito velha, a madeira pode dar mofo; é ruim para o problema respiratório da senhora”. Depois, o motivo real: “além do mais, o bairro todo está se modernizando, não combina mais com coisa antiga assim”. Coisa antiga? Não, ela é a minha janela!

Tenho outras coisas também: 83 anos, asma, reumatismo, problemas cardíacos, dedos finos – que tanto me serviram ao delicado ofício de fiar –, e tenho memória. Desde moça, recém-casada, moro nesta casa e habito esta janela. Meu marido – que Deus o tenha em bom lugar – viajava muito. Eu guardava minha esperança na janela. Para mim bastava a porção de realidade que ela me emoldurava. De olhos semi-baixos, meus dedos corriam naquela deliciosa magia que transforma maços de algodão em linha finíssima. Eu mesma bordava e perfumava os lençóis de cama; e esperava.

Mesmo depois que ele se foi, não deixei de estar à janela. Percebi que a atitude de esperar restava em mim inabalável. O que eu esperava? Eu realmente esperava alguma coisa? Os olhos morriam aos poucos em meus devaneios. Será que de tanto olhar a lua, eu tinha me apaixonado pela luneta? A janela. Minha companheira, minha ânsia de espera, meu filtro de luz de sol. Adorava enfeitá-la com cortinas coloridas, e pela manhã, abri-la preguiçosamente, ouvindo o barulhinho da madeira roçando o batente. Ouvir as dobradiças. O cheiro forte do óleo de peroba com que a ungia.

Há semanas, meus filhos querem tirá-la da casa e de mim, trocar por uma moderna. Nem lembram do quanto fiquei feliz quando meu quarto foi transferido para a região da janela por ocasião da última reforma... Mas estou velha, quase nada me é permitido. Não posso fiar, não posso ter minha janela. A memória lúcida me atormenta. Humildemente, aceitei não abri-la mais como antes, para evitar as tais perigosas correntes de ar. Ah, mas como eu gostava das correntes de ar misturando os cabelos finos... Não posso. Não posso ser fiadeira. A janela também envelheceu. É por isso então que ela não pode mais ser janela?

Saudade dolorosa do tempo em que ela foi janela, e eu, uma curiosa espectadora da vida. Sinto suas ranhuras, a madeira gasta e descorada do sol. Como queriam que ela ficasse? Nunca soube de alguém que, fitando o divino, permanecesse ileso.

Ela viu tantas coisas passarem, e agora vê chegando a sua vez. Eu também não me sustentarei por muito tempo. Não sei ver fora da janela. Ah, e esses dedos que doem tanto ao escrever! Será que lembrar é sofrer? Existe no ser humano uma essência de eternidade que não admite a finitude das coisas. Mas sempre haverá outra fiadeira, e outra janela, e outra fiadeira, e outra janela, e outra


* Jaciene Andrade é graduanda do 7º semestre de Letras Vernáculas da Uefs.

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