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sexta-feira, 28 de março de 2014

O INDIGENTE

* Por Maria Rosane Vale Noronha Desidério


Era já quase onze horas da noite, quando um homem de roupas amarrotadas e sujas atravessou a praça principal da cidade. Trazia nas costas um saco aparentemente pesado. Nos olhos havia um certo mistério e resignação.

Esse homem singular tinha nome, é claro, chamava-se Manuel Deodoro Rabelo, mas habituou-se desde pequeno a ser chamado de Maneco, embora, há tempos, tal nome já lhe soasse distante.
Pra quê tanto nome? Dizia ele para si mesmo. Se nem o reconheciam por este nome quanto mais pelo outro, que nem parecia ele? E, de fato, Maneco tinha razão, já que todas as noites ele atravessava a praça principal da cidade para recolher-se no banco que havia debaixo de um juazeiro há mais de dez anos, e quase ninguém o chamava de Maneco. E, quando recebia a “honra” de ser notado, embora fosse raro, era chamado de o mendigo da praça, apenas isso.

Maneco reconhecia sua invisibilidade face aos habitantes da cidade. Muitas foram as manhãs que remexia no lixo à procura de comida e, embora todos o vissem, raramente havia um indivíduo que o agraciasse com um bocado de pão ou ainda, quando a sorte era muita, um copo de leite ou água para ajudar a engolir o pão dormido que recebia.

Mas, o que o entristecia mesmo nem era o fato de quase ninguém notar sua existência, mas sim quando duvidavam de sua honestidade. Era pobre sim, pensava ele, mas era honesto, e isso era a única coisa que lhe restara, sua honestidade.

Geralmente Maneco travava longas conversas consigo mesmo. Isso denotava sua completa invisibilidade em face àquela sociedade tão apressada e indiferente. Ele até desejava estabelecer contato, mas sua aparência causava demasiada desconfiança, desprezo até.

Os longos anos passados na rua corroeram aos poucos a saúde do pobre homem. A pele precocemente envelhecida pelo sol, os pés profundamente rachados e as mãos ressequidas eram apenas detalhes ínfimos diante das graves lesões que as constantes infecções respiratórias causaram em seu pulmão ou das úlceras estomacais adquiridas durantes as longas horas de fome. A ausência de saúde de Maneco denunciava seu futuro, ou melhor dizendo, a inexistência de qualquer perspetiva de futuro.
O desfecho da história se deu como sua existência até então. Sem causar alarde. Foi em um dia gelado de uma quinta feira junina. Neste dia, ele seguiu sua velha rotina. E ao fim do dia, recolheu-se em seu velho banco da praça que, não por acaso, considerava como seu lar, ou pelo menos algo parecido. Maneco adormeceu olhando para o céu, buscando entre as nuvens a presença da lua, que escondera-se por detrás do nevoeiro. Porém, nunca mais acordou. A noite foi fria, muito fria. Talvez a mais fria noite que Maneco passou na rua. Pela manhã tudo estava igual. As ruas apressadas, as buzinas irritantes, gente andando pra lá e pra cá. Tudo igual a todos os dias de semana.

O corpo de Maneco foi encontrado pela guarda municipal e enterrado em uma cova rasa para indigentes, sem placa, sem nome, sem nada. Uma história, uma vida, um passado. Nada. Tudo se perdera.

A cidade adormeceu, amanheceu e ninguém notou sua ausência.

* Maria Rosane Vale Noronha Desidério é estudante do curso de Letras Vernáculas na Uefs.

sexta-feira, 21 de março de 2014

UM SIMPLES CONTO

* Por Kell Ferreira


E foi de repente que tudo começou.

Era uma segunda feira, 26 de agosto de um ano qualquer.

O dia estava lindo, iluminado, parecia um dia normal como os outros. Ela mal havia acordado e já estava atrasada, olhou para o relógio e tomou um susto, de imediato levantou, tomou um banho rápido e vestiu a primeira roupa que achara, nem tomou café e saiu em disparada para pegar o ônibus.

Durante sua caminhada até o ponto ela pensava em como seria essa nova fase de sua vida. Ainda preocupada com seu atraso colocou seu fone de ouvido na tentativa de se distrair e, ao som de Sarah Mclachlan (Fallen live), por minutos se esquecera de tudo e todos à sua volta e pôs-se a viajar em seus pensamentos.

Ela não olhava nos olhos das pessoas, era alguém desligada que só queria seguir seu destino sem cruzar o caminho de outras pessoas (mal sabia ela o que o destino lhe havia reservado).

De repente ela se deu conta de que já havia chegado ao seu destino e apressadamente desceu do ônibus. Ao longe se aproximava um alguém de camiseta branca, bermuda jeans, cabelo curto, para ela era apenas mais um alguém sem importância. À medida que essa pessoa se aproximava algo estranho se movia dentro dela. Sentia sensações estranhas jamais sentidas em outros tempos, ela já não era mais a mesma.

Quando, de súbito, olhos claros cruzaram com os seus olhos negros feito a noite, fazendo seu corpo estremecer, suas mãos começaram a suar, seu coração batia forte. Ela havia ficado atônita e sem entender o que estava a acontecer, do porquê aquele encontro a havia deixando assim.
Após aquele instante ela sentiu que sua vida jamais seria a mesma. 

Todas as manhãs ela descia naquele mesmo ponto e era como se seus olhos procurassem por esse alguém, ela vivia na ânsia de encontrar esses olhos claros outra vez, isso era estranho e ao mesmo tempo intenso. Por coincidência ou destino esses olhares passaram a se cruzar outras vezes e ela sentia as mesmas sensações. Surgiam mais uma vez os mesmos questionamentos: porque olhei naqueles olhos que me perturbam? Que estranho.

O que o destino a reserva com esse encontro ela ainda não sabe, mas de uma coisa ela tem certeza, nenhum destino ou caminho se cruzam por acaso.


* Kell Ferreira cursa o 2º semestre de Letras Vernáculas na Uefs.

sábado, 15 de março de 2014

O OUTRO LADO DO DESEJO

* Por Joilma Maria de Freitas Trindade


Passava do meio-dia, quando ela entrou no meu gabinete e perguntou-me: Já almoçou? Olhei para aquela figura esbelta, cintura fina, peitos fartos, cabelos longos, olhos castanhos claros; arrogante, pretensiosa, e pensei: diante de tanta petulância, responder o quê? Porém, esquivei-me, e, ligeiramente, atribui-lhe como resposta uma pergunta: o terno que pedi que pegasse na alfaiataria está adequado para ir a um casamento? Posso guardá-lo até quando, sem que esteja fora de moda? Em quais outras situações poderei usá-lo? Era muito bem informada, eclética, conhecia de tudo um pouco. Ela desarmou-se de sua arrogância, e, curiosamente começou a questionar-me sobre minhas palavras. Mas, novamente, tratei de lhe tirar do ambiente que não lhe convinha. Solicitei que pedisse a criada que passasse um café fresquinho para nós.

Não demorou, e lá estava ela de volta com a bandeja composta por duas xícaras de porcelana fina, trazidas de uma viagem à Europa. Trouxe também alguns biscoitos finos, que costumava comprar para receber minha clientela. Acomodou-se ao meu lado, como se estivéssemos algo muito sério a conversar. Procurei não desviar a atenção da papelada que tinha em mãos, pois sabia que no primeiro vacilo, ela tentaria mencionar um assunto relacionado com o que pretendia me fazer ver ou sentir; há algum tempo, quem sabe.

Conversa vai, conversa vem, como dizia minha vó, continuava preso àquele montão de papéis e pastas, que tomavam toda a minha mesa. Ela insistia em fazer com que olhasse para seus movimentos, pois conversava e gesticulava muito, pude perceber num rápido movimento da cabeça. Vendo o passar das horas, isso já era quase quatro da tarde, não esqueceu o primeiro questionamento e repetiu: Já tinha almoçado? Talvez quisesse especular onde teria feito minha refeição. Fiz de conta que não ouvi a interrogativa, deixei cair uma parte do material no chão, e, escapei mais uma vez.

Não queria desagradá-la, ou quem sabe desnutri-la de suas esperanças. Afinal, suas intenções não eram tão ruins assim. Incomodava-me, porque não era o que realmente desejava. Assim, pedi licença, disse-lhe que um compromisso inadiável me esperava e não sabia o horário do meu retorno. Participaria de uma reunião, não mencionei o lugar para não ficar intrigada. Disse-lhe que ia definir algumas estratégias em defesa de uma causa de um nobre médico da região. Ela, então, acompanhou-me até a sacada da casa, com seu olhar atento e curioso. Parecia-me ansiosa, sei que não desistiria tão fácil de relatar seus predicados, para alcançar seus objetivos. Cheguei, já era madrugada. Entrei devagarzinho, não acendi as luzes, portei-me como um bom cavalheiro, pois não queria acordá-la. Subi as escadas, entrei em meu quarto, tirei os sapatos, abri a fivela do cinto, lancei fora a camisa, quando de repente ouvi um barulho por trás da cortina. Esta era grossa, de tecido vermelho escuro, não permitia ver, de imediato, o que ou quem estava ali atrás. Apesar do susto, mantive a clama e me dirigi, aos poucos, em direção à cortina. Não foi fácil, não imaginava o que me esperava. 

Levantei a cortina e lá estava ela, com os cabelos soltos, vestida numa bela camisola preta, uma rosa vermelha nos cabelos, um perfume francês espalhado pelo corpo, os pés brancos e finos descalços, e a brisa da janela semiaberta, passeando por seu corpo. Hesitei, no primeiro momento, mas não pude deixar de elogiá-la pela surpresa que ora se propôs a me fazer. Nunca acreditei que teria tal atitude. Sei que tinha suas pretensões, seus anseios, seus sonhos, mas deixar-se envolver daquele jeito, surpreendeu-me, consideravelmente.

De repente, perguntou-me se o terno que encomendei na alfaiataria seria usado com ela. Numa taça de cristal, ofereceu-me um licor.  Agia como se quisesse me deixar num beco sem saída. Colocou-me sentado na poltrona que havia em meu quarto, abaixou-se junto aos meus pés, e não perdeu a oportunidade.  Começou a explanar a narrativa que guardava, há anos, em seu íntimo. Levantei-me bruscamente, tentei evitar, mas já era tarde.

Falou-me dos sentimentos que nutria pela minha pessoa, do desejo de se tornar minha esposa, da felicidade que nos esperava. Apesar da idade um pouco avantajada, dos filhos que poderíamos ter. Não era essa minha intenção, mas contive suas emoções, explicando que não passávamos de bons e velhos companheiros. Tinha uma grande admiração por seus atributos; sua competência, suas habilidades, sua confiança, seu empenho, seu cuidado, seu zelo. Naquele momento, não pensei nos pontos negativos que lhe acompanhavam, estes todos nós carregamos, são marcas escritas num livro próprio.

Mas, enfim, apresento a minha dedicada e entusiasmada governanta, a quem dedico todo meu carinho e respeito pelos anos de trabalho que compartilhamos juntos. Governanta que achava que sabia tudo sobre mim. Só não sabia que era um homem perdidamente apaixonado pela filha de um nobre médico da região, e a causa que saí para definir as estratégias naquela preciosa noite, tratava-se dos trâmites para o noivado e a realização do meu casamento com a filha do conceituado profissional. Quis poupá-la... Informá-la da decisão no momento oportuno.


* Joilma Maria de Freitas Trindade cursa Letras Vernáculas na Uefs.

terça-feira, 4 de março de 2014

UMA REVISTA TAMBÉM SE FORMA... COM O GRADUANDO!

Por Danilo Cerqueira*





Fotos e cartaz da recepção aos calouros em Letras (13/04/2010)




Acho importante destacar a próxima formatura dos estudantes de Letras da Uefs. São as turmas que começaram a graduação sendo apresentadas, numa recepção  a elas, então calouros, no dia 13 de abril de 2010, ao periódico discente de Letras da Uefs. Acredito que para a Graduando também foi um começo. Ela estava sendo apresentada ao curso e, vejam só, o curso estava sendo apresentado aos agora próximos formados. Penso que seja importante escrever sobre este compartilhamento e, se possível, agregar mais valor a esse momento de vocês e dela. Imagino que, de alguma forma, ela esteja formando também.

Sabe-se, obviamente, que alguns abandonaram o curso - e também não mais aparecem nas edições da revista - nesse trajeto. É preciso lembrar deles. São pessoas que optaram por outros caminhos ou não puderam compartilhar de mais momentos dentro do curso, também não puderam conviver mais com a atuação da revista. Mas chegaram a escolher fazer Letras - ou ficar na revista -, e isso já é um motivo para que a Graduando se interesse em especial por essas pessoas. Alguns dos formandos e membros da revista certamente devem ter mais motivos para lembrar deles. Aos que continuaram - e continuarão, porque também se sabe, há dessemestralizados - deve ser  preciso agradecer por acreditarem no melhor curso que se pode contribuir para melhorá-lo. 

O curso é dos que o fazem, não vai deixar de sê-lo quando o diploma for recebido, o familiar canudo. Vai deixar de ser no papel, papel esse que agora vai servir de chave para abrir portas como documento oficial. Mas, acreditem, muitas portas foram abertas para adentrar às salas durante os anos da graduação e das outras salas para que vocês, finalmente, conquistassem uma das muitas outras chaves referente a elas. Muitos ou quase todos trabalharam durante a graduação. E lá, vocês abriram portas para outros entrarem, muitos desses que adentraram à sua abertura certamente foram seus estudantes, oficiais ou não, nas famosas aulas particulares ou bancas. A Graduando, quase nesse sentido, tentou abrir portas nesses quatro anos.

São quatro anos... encontros nem sempre prazerosos em nossa condição humana, talvez nem sempre coerentes, talvez nem sempre incoerentes, mas sempre dispostos ao oferecimento de uma continuidade às salas de aula e em outros espaços ocupados e percorridos, nos quais, certamente o conselho da revista e vocês pensaram e vivenciaram a condição de Graduando em Letras da Universidade Estadual de Feira de Santana. As vitórias cotidianas foram suficientes para a chegada deste momento. Vocês merecem e Revista também.

Um dia, um dos conselheiros do periódico discente de Letras da Uefs disse que o símbolo da Graduando parecia uma chave. Lembrei, há algum tempo, do poema de Drummond intitulado "A chave". É uma ótima ocasião para trazê-lo a uma leitura mais localizada.

PS: Não, não acho que a revista deve mudar o nome, haverá o graduando em Letras na Uefs por muito tempo. Agora, a rigor, cada um dos formandos, depois do canudo, será, vejam só, um Pós-(Graduando).

PARABÉNS à Graduando e aos Formandos!


A CHAVE
Carlos Drummond de Andrade (Corpo, 1984)

E de repente
o resumo de tudo é uma chave.
A chave de uma porta que não abre
para o interior desabitado
no solo que inexiste,
mas a chave existe.
Aperto-a duramente
para ela sentir que estou sentindo
sua força de chave.
O ferro emerge de fazenda submersa.
Que valem escrituras de transferência de domínio
se tenho nas mãos a chave-fazenda
com todos os seus bois e os seus cavalos
e suas éguas e aguadas e abantesmas?
Se tenho nas mãos barbudos proprietários oitocentistas
de que ninguém fala mais, e se falasse
era para dizer: os Antigos?
(Sorrio pensando: somos os Modernos
provisórios, a-históricos...)
Os Antigos passeiam nos meus dedos.
Eles são os meus dedos substitutos
Ou os verdadeiros?
Posso sentir o cheiro do suor dos guarda-mores,
o perfume- Paris das fazendeiras no domingo de missa.
Posso, não. Devo.
Sou devedor do meu passado,
cobrado pela chave.
Que sentido tem a água represada
no espaço onde as estacas do curral
concentram o aboio do crepúsculo?
Onde a casa vige?
Quem dissolve o existido, eternamente
existindo na chave?
O menor grão de café
derrama nesta chave o cafezal.
A porta principal, esta é que abre
sem fechadura e gesto.
Abre para o imenso.
Vai-me empurrando e revelando
o que não sei de mim e está nos Outros.
O serralheiro não sabia
o ato de criação como é potente
e na coisa criada se prolonga,
ressoante.
Escuto a voz da chave, canavial,
uva espremida, berne de bezerro,
esperança de chuva, flor de milho,
o grilo, o sapo, a madrugada, a carta,
a mudez desatada na linguagem
que só a terra fala ao fino ouvido.
E aperto, aperto-a, e de apertá-la, ela se entranha em mim. Corre nas veias.
É dentro em nós que as coisas são,
ferro em brasa – o ferro de uma chave.

* Danilo Cerqueira é formado em Letras Vernáculas e especialista em Estudos Literários, ambos pela Uefs. Atualmente cursa o Mestrado em Estudos Literários também na Uefs e é membro do Conselho Editorial da Graduando.

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