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sexta-feira, 27 de novembro de 2015

INFÂNCIA – UMA PERFEIÇÃO QUE NÃO PASSA

Por Maria Rosane Vale Noronha Desidério*


Os passarinhos estão piando lá fora, no telhado ao lado e talvez sobre o meu também. É bom ouvi-los! Sabemos que já passou das cinco da manhã e que o sol se espreguiça, abrindo os olhos para o novo dia.

– É hora de levantar! Alguém gritando lá do fundo. A cozinha já fervilha. Mamãe e vovó preparam o café da manhã para os homens, todos trabalhadores do campo. É dia feliz. A noite foi de chuva e a terra está molhada e cheirosa. Dia gostoso, preguiçoso. Bom para dormir mais. O problema é que no sertão se deve acordar cedo. A vida começa às cinco horas, talvez antes. Certamente antes para os mais velhos ou apressados.

Eu sinto um solavanco em minha rede, é mamãe reclamando minha demora. – Vá buscar água Lisbela os potes estão secos, uma miséria! Você dorme demais. Eu durmo demais?! Essa é boa! Mamãe tinha essa mania de achar que quando o sol sai do esconderijo, ninguém pode mais dormir, é preguiça. E gente preguiçosa no campo é uma lástima! Era o que pensava mamãe nos tempos da vida na roça. Ela era assim, mas o vovô era ainda mais enérgico. Acordava antes do galo, do sol e dos passarinhos. Quando mamãe e vovó despertavam, ele já vinha chegando do curral com a vasilha cheia de leite. Dormia quando o sol se apagava e acordava antes do primeiro raio de sol apanhar o chão. Vovô sempre foi assim. Era um homem típico do sertão. Era “um forte” como bem dizia Euclides.

E eu quando acordava com os sopapos de mamãe em minha rede, corria para cumprir minhas tarefas matinais. Ia ao açude buscar água para encher os potes da cozinha, depois ia buscar a lenha para o fogo e, por fim, mamãe me fazia varrer a casa, a calçada grande da frente da casa e o quintal. Quando acabava mamãe ainda me mandava lavar a louça do café. Uma lástima! Eram panelas sujas de carvão do fogão a lenha. Eu sempre as lavava reclamando, soltando mil justificativas para não ser obrigada a fazer aquilo. Parecia uma advogada em dia de julgamento. Uma advogada, não. Uma promotora acusando mamãe. Mas claro que esse discurso ocorria somente entre os limites de meu pensamento. Se mamãe ouvisse... Hum! Daria em mim, com certeza, alguns piparotes na cara. Preferia sempre por segurança e para conservação de minha integridade física o discurso mental. Era muito mais seguro!

Eu sempre fui assim. Mania de imaginar o mundo, o sertão. O sertão para mim era maior que o mundo. Um dia o mundo engoliu o sertão e ele ficou pequeno. Foi mamãe quem me disse. Mas ainda era grande o sertão. Eu andava, andava... Olhava do alto do morro e não conseguia enxergar o fim. O sertão para mim ainda era enorme.

Meu passatempo preferido na vida era embrear-me na mata. Fugir a léguas da cozinha, dos serviços. Eu voltava para o açude. Era bom ficar sozinha lá, ouvindo o grito da cigarra até não percebê-la mais de tanto ouvi-la. Já viu? Às vezes a gente ouve ou vê tanto uma coisa que para de percebê-la mesmo ela estando ali. Lembro bem dos pés de cajarana, imbu, manga e seriguela que vovô plantou no sangrador do açude. Eu ia pra lá. Subia em uma das árvores, de preferência a de cajarana por ser mais fácil. E, com as mãos, o vestido e qualquer outro suporte cheio de frutas ia refazer meu café da manhã. Era uma festa, particular!

Mamãe reclamava das minhas fugas, mas era tão bom! Sinto saudades! Saudades de tudo. O tempo, às vezes, engole a gente, nos faz crescer sem se perceber, nos faz perder certas vivências sem que prestemos atenção. Deve ser estratégia da vida para não ficarmos agarrados, sem querermos nos desprender de tempos bons que, inevitavelmente, precisamos deixar em fazes passadas da vida. É lástima!

O campo foi minha infância. Uma perfeição. Certo que as panelas sujas de carvão ficam de fora das lembranças animadas, mas pensar na mamãe entrançando o meu cabelo em noite de luar, ouvindo a vovó contar causos do passado é doce. Lembro que à noite nos reuníamos na calçada. O vovô, o papai e alguns tios e primos riam à beira de uma fogueira, assando milho ou qualquer outra coisa de comer. As mulheres se amotinavam na calçada ouvindo a vovó ou falando todas ao mesmo tempo. Dificilmente se podia distinguir as falas de cada uma.

Era muito bom. Mas o tempo passa ligeiramente e muda tudo de lugar. Eu tive que caminhar, seguindo os seus mandos. E troquei o cheiro da chuva pela fumaça dos carros, os pés de seriguela, cajarana, manga e imbu pelos supermercados, as noites de luar ouvindo a vovó e as mulheres pelos ruídos da televisão, dos livros, do mundo. Mas o cheiro da chuva nunca saiu de minha alma, as mãos da mamãe entrançando os meus cabelos permanecem em minha memória, e as frutas do pé ainda cheiram em meu nariz, ainda as degusto em minha memória, em minha alma. A infância passa, mas os cheiros, os carinhos, as brincadeiras e repreensões nunca saem, nunca se despedem de verdade. Mesmo que o tempo amorteça nossos sentidos e corra desprendendo-os das lembranças. De repente a gente vê que nada se perdeu, tudo permanece dentro, lá dentro de nós, eternamente...

Aos que nunca se desprendem da memória porque nela guardam os cheiros da vida.



* Maria Rosane Vale Noronha Desidério cursa o 7º smestre de letras vernáculas (2015.2) na Uefs.


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